Regulamentação da Inteligência Artificial para Dispositivos Médicos no Brasil: Desafios e Iniciativas

A integração da inteligência artificial em dispositivos médicos tem permitido avanços
significativos em áreas como radiologia, dermatologia, cardiologia e monitoramento remoto
de pacientes. Contudo, o uso de algoritmos autônomos ou semiautônomos levanta questões
quanto à segurança, eficácia, responsabilidade civil e ética.
A ausência de uma regulação clara pode tanto inibir a inovação quanto expor pacientes e
profissionais a riscos e, também, inibir potenciais investimentos no setor, por conta da falta de
clareza quanto as “regras do jogo” e incertezas jurídicas.
A Anvisa é a autoridade competente para regulamentar e fiscalizar dispositivos médicos no
Brasil. Em relação à IA, a agência vem acompanhando os marcos regulatórios internacionais,
com destaque para o diálogo com entidades como a Food and Drug Administration (FDA), dos
Estados Unidos, e a European Medicines Agency (EMA), da União Europeia.
Em 2022, a Anvisa publicou o Painel de Inovação Regulatória, no qual reconheceu a
necessidade de normas específicas para produtos de saúde baseados em IA incluindo
softwares como dispositivos médicos (Software as a Medical Device – SaMD). Desde então,
tem promovido consultas públicas, workshops e participado de fóruns internacionais como o
International Medical Device Regulators Forum (IMDRF), onde são discutidas as diretrizes
globais para o uso seguro da IA em saúde.
Em 2024, iniciou-se um projeto-piloto para avaliação de produtos de IA na saúde, com foco em
modelos de machine learning adaptativos, em parceria com instituições acadêmicas e
empresas inovadoras.
Como parte desse projeto-piloto, a Anvisa estruturou um processo de submissão voluntária de
tecnologias baseadas em IA, com o objetivo de sistematizar critérios técnicos para avaliação
pré mercado e pós mercado. A iniciativa vem sendo conduzida em ciclos, nos quais empresas
interessadas submetem seus algoritmos para análise colaborativa, com foco em aspectos
como transparência algorítmica, reprodutibilidade dos resultados, segurança cibernética,
rastreabilidade de decisões e capacidade de aprendizado contínuo (continuous learning). A
agência também vem testando modelos de monitoramento contínuo e atualização regulatória
adaptativa, com base em evidências do desempenho real dos sistemas (real-world
performance).
Essa experiência prática tem fornecido subsídios valiosos para a futura regulamentação
específica de dispositivos médicos com IA no Brasil, contribuindo para a construção de um
modelo regulatório alinhado às melhores práticas internacionais, mas sensível às
particularidades do sistema de saúde brasileiro. A expectativa é que os aprendizados obtidos
com o piloto subsidiem a publicação de uma norma específica até 2026.
Base Legal da Atuação da Anvisa em Tecnologias com IA
A competência da Anvisa para regulamentar e fiscalizar dispositivos médicos, incluindo aqueles
baseados em inteligência artificial, está fundamentada em diversos diplomas legais e
infralegais, que conferem à agência o poder de normatizar, controlar e monitorar produtos e
serviços submetidos à vigilância sanitária.
A principal base legal encontra-se na Lei nº 9.782/1999, que define o Sistema Nacional de
Vigilância Sanitária e cria a própria Anvisa. O artigo 8º da referida lei estabelece que:
“Compete à Anvisa proceder à regulamentação, controle e fiscalização dos produtos e serviços
que envolvam risco à saúde pública, inclusive dos ambientes, dos processos, dos insumos e das
tecnologias a eles relacionados.”
Ainda de acordo com o inciso I do mesmo artigo, é atribuição da Anvisa:
“Regulamentar, controlar e fiscalizar os produtos e serviços que envolvam risco à saúde
pública.”
A IA aplicada a dispositivos médicos — especialmente os classificados como Software as a
Medical Device (SaMD) — se enquadra nessa previsão, uma vez que são tecnologias
diretamente relacionadas ao diagnóstico, prevenção, monitoramento e tratamento de
doenças, podendo impactar de forma direta a saúde dos pacientes.
Além disso, a Lei nº 6.360/1976, que dispõe sobre a vigilância sanitária a que ficam sujeitos os
medicamentos, drogas, insumos farmacêuticos e correlatos, também reforça o papel da Anvisa
quanto à autorização prévia de comercialização e ao registro de dispositivos médicos, os quais,
quando baseados em IA, devem se submeter ao mesmo rito regulatório — com eventuais
adaptações quanto à natureza tecnológica da aplicação.
Complementarmente, a atuação da Anvisa em temas emergentes de inovação tecnológica,
como a IA, também se ancora nos princípios da precaução e da análise de risco, previstos na
Lei nº 13.848/2019, que trata das agências reguladoras. Essa norma determina que a atuação
das agências deve se basear em evidências técnico-científicas e levar em consideração o
impacto regulatório, o que legitima a criação de marcos regulatórios dinâmicos, adaptados às
transformações tecnológicas.
Portanto, é fato que a Anvisa possui base legal e legitimidade regulatória plena para atuar na
normatização, autorização, monitoramento e fiscalização de dispositivos médicos que utilizem
IA assegurando sua eficácia, segurança e conformidade ética e, neste sentido, startups,
healthtechs, investidores e todos aqueles que pretendem estar neste mercado, precisam estar
cientes da necessidade de enquadramento e habilitação dentro das exigências e especificações
do ambiente regulatório-sanitário.
Casos Práticos de Aplicação da IA em Dispositivos Médicos
Internacionalmente:
- IDx-DR (EUA): Primeiro dispositivo médico com IA aprovado pela FDA que detecta
retinopatia diabética sem necessidade de um médico interpretar os resultados. A solução é
utilizada em clínicas e farmácias como uma forma de triagem autônoma. - Aidoc (Israel/EUA): Utilizado em hospitais para priorizar exames de imagem com
suspeita de hemorragia intracraniana ou embolia pulmonar. A IA analisa tomografias e alerta
os médicos de forma automatizada, acelerando decisões críticas. - SkinVision (Europa): Aplicativo que avalia lesões de pele por meio de fotos, utilizando
IA para estimar o risco de câncer de pele. Está em uso em países como Holanda, Alemanha e
Reino Unido.
No Brasil:
- Laura (Curitiba): Um sistema de IA que opera em hospitais públicos e privados
auxiliando na detecção precoce de sepse. Desenvolvido pela startup curitibana Laura Network,
o sistema monitora sinais clínicos e emite alertas em tempo real à equipe médica. - RADVid-19 (Fiocruz): Sistema desenvolvido para apoio ao diagnóstico da COVID-19
com base em imagens de radiografias de tórax, combinando IA e ciência de dados. Foi adotado
em hospitais públicos como medida emergencial durante a pandemia.
Esses exemplos mostram como a IA pode apoiar decisões médicas, reduzir filas, aumentar a
precisão diagnóstica e racionalizar recursos, bem como existem diversas outras modelagens
em desenvolvimento pelo mundo, gerando maior pressão às autoridades regulatórias, no
sentido de acelerar o debate para a regularização e regulamentação dessa tecnologia.
Iniciativas Legislativas no Congresso Nacional
No Congresso Nacional, diversos projetos de lei abordam a regulamentação da inteligência
artificial de maneira ampla, com alguns focando especificamente na área da saúde. Destacam-
se:
- PL 21/2020 – Marco Legal da Inteligência Artificial, que prevê princípios éticos,
responsabilidade e direitos fundamentais. O texto original não trata de forma específica os
dispositivos médicos, mas abre caminho para regulamentações setoriais. - PL 2.414/2023 – Em tramitação no Senado, propõe diretrizes específicas para o uso de
IA na medicina, incluindo requisitos de transparência algorítmica e validação clínica.
Essas propostas buscam conciliar inovação com a proteção dos direitos dos pacientes,
alinhando-se com o movimento internacional por uma IA confiável e auditável e são um
sinalizador de que o legislador entendeu a importância desse debate e a preocupação de se
estruturar um marco legal próprio a fim de garantir a segurança jurídica necessária para todos
os participantes, preparando o cenário para os futuros regulados e reguladores.
O Papel do Poder Judiciário e o Risco de Judicialização
De toda a sorte, tendo em vista que a tecnologia avança e diante da ausência de
regulamentação específica, o Poder Judiciário vem sendo chamado a se posicionar sobre
litígios envolvendo falhas, diagnósticos equivocados ou tratamentos mediados por IA. Essa
judicialização precoce representa um risco duplo: de um lado, pode gerar decisões baseadas
em conceitos jurídicos tradicionais que não consideram as especificidades tecnológicas; de
outro, pode impor insegurança jurídica às empresas desenvolvedoras e aos profissionais de
saúde.
Alguns tribunais têm sinalizado a necessidade de perícias especializadas e de uma abordagem
casuística, respeitando o princípio da precaução. Também se observa a crescente invocação da
Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) em casos envolvendo IA, principalmente no que tange à
explicabilidade dos algoritmos e ao consentimento informado.
Riscos e Benefícios de uma Regulamentação Adequada
Benefícios:
- Segurança do paciente: Estabelece padrões técnicos e de validação que garantem
eficácia e reduzem erros. - Inovação com confiança: Empresas e startups passam a atuar em um ambiente jurídico
previsível. - Acesso equitativo: A regulação pode promover modelos mais acessíveis de IA em
saúde, inclusive para o SUS. - Redução da judicialização: Com regras claras, evita-se a insegurança jurídica e a
sobrecarga do Judiciário.
Riscos da ausência ou excesso de regulamentação:
- Ausência: Pode levar à adoção indiscriminada de soluções não testadas, expondo
pacientes a riscos éticos e clínicos. - Excesso: Regras excessivamente rígidas ou desatualizadas podem sufocar a inovação,
especialmente de pequenas empresas nacionais.
O equilíbrio regulatório-sanitário requer uma abordagem dinâmica e baseada em evidências,
com participação ativa das autoridades regulatórias, da sociedade, academia e setor privado.
O delineamento jurídico é fundamental para o desenvolvimento efetivo e permanente desse
novo mercado.
Perspectivas
O Brasil está diante de uma oportunidade histórica para liderar, na América Latina, a
construção de um arcabouço jurídico e regulatório robusto e moderno para a IA em saúde.
A atuação articulada entre setor privado, Anvisa, Congresso Nacional e Poder Judiciário será
determinante para garantir que os benefícios da IA sejam usufruídos com segurança, equidade
e respeito aos direitos fundamentais.
A regulamentação não deve ser um freio à inovação, mas sim um guia para que a tecnologia
avance com responsabilidade e impacto positivo para o sistema de saúde e para a vida das
pessoas, bem como para oferecer segurança jurídica aos investidores e desenvolvedores que
estão neste momento buscando e implementando mecanismos de fomento para estudos e
pesquisas em IA na saúde.
*Artigo escrito por Evaristo Braga de Araújo Jr., sócio fundador, especialista nas áreas de
Direito Administrativo e Regulatório da Saúde (ANVISA) e de Direito Tributário. Atua há mais
de 20 anos junto a empresas do complexo industrial da saúde, prestando assessoria e
consultoria nas áreas regulatória da saúde, Life Science e compliance. Graduado em Direito
pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP, pós-graduado em Direito
Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP, pós-graduando em
Direito Sanitário pela Faculdade de Saúde Pública da USP. Membro da Ordem dos Advogados
do Brasil e da Associação de Advogados do Estado de São Paulo, desde 1999.
https://abimed.org.br/publicacoes/revista-vi-tech-edicao-11/
